sábado, 12 de abril de 2008

A Experiência do Acampamento

Ao longo de quase dois anos eu passei por uma experiência de vida que poucas pessoas tiveram. Entrar para a universidade foi uma expectativa que eu acalentei durante muito tempo, mas tudo o que eu vivi até aqui foi muito diferente do que eu esperava, em verdade, eu entrei na universidade com a cabeça cheia de idéias do senso comum sobre o que seria essa experiência. De início eu pensei que poderia fazer o curso superior da mesma maneira que fiz o meu ensino médio, ou seja, trabalhar de dia e estudar a noite. O fato de ter passado o meu primeiro período recebendo um auxílio-doença devido a um acidente de trabalho me ajudou a compreender que viver uma universidade era muito mais que frequentar aulas; essa foi a minha primeira aprendizagem aqui na UFF, muitas outras viriam.

Durante quase dois anos eu morei numa ocupação dentro do campus do Gragoatá, na Universidade Federal Fluminense. Essa ocupação chamava-se Acampamento Maria Júlia Braga: O Quilombo do Século XXI. Foi uma experiência muito rica em todos os sentidos, pois possibilitou a quem dela fez parte rever todas as suas crenças, o papel social em que fora colocado ao longo de sua vida. Durante o período de existência do acampamento, tivemos a chance de fazer uma série de discussões que nos permitiam pôr a limpo a nossa criação familiar, ver que esta nada mais era do que o reflexo do modelo de sociedade em que vivemos.

A vivência no acampamento permitiu a todos que lá estavam, e que se dispuseram a isso, refletir sobre a educação que tiveram e a maneira como esta influenciava na sua conduta. Foi um período em que houveram muitos conflitos, pois as pessoas nunca chegam prontas, cada um de nós tinha suas maneiras de lidar num espaço de multipla convivência, onde era necessário a colaboração mútua para garantir uma boa convivência. O dia-a-dia do acampamento foi uma verdadeira “escola” para quem se mostrou disposto a rever velhos conceitos de vida e convivência, divisão de trabalho e até de posturas diante da vida e das pessoas em geral.

Primeiramente vou falar de mim mesmo e de como a vivência que tive no acampamento me permitiu mudar muito da minha maneira de ser, fruto de minha criação e das concepções de mundo que tinha antes de entrar na universidade e me tornar parte do acampamento. Antes do acampamento eu morei quase um ano na Casa do Estudante Fluminense e nesse lugar enfrentei todas as dificuldades a que alguém não educado para uma vida realmente independente estava sujeito. Em primeiro lugar eu não tinha o menor jeito para cozinhar, para não dizer que não sabia nada eu posso dizer que sabia fazer café, mas era só isso. Numa noite eu cheguei a pedir ajuda para fazer um miojo.

A minha experiência no acampamento me permitiu romper com os diversos paradigmas que eu trouxera de minha criação familiar. No acampamento eu aprendi a cozinhar, que as tarefas de um lugar onde se mora devem ser compartilhadas por todos, sem distinção. A partir das discussões que fazíamos no acampamento aprendi que a convivência entre pessoas diferentes exige um respeito mútuo por parte de todas as pessoas do espaço. Enfim, no acampamento eu realmente aprendi a ser independente,

Tais considerações são importantes porque desde o início o acampamento foi concebido a partir de um série de debates a respeito de como tornar possível a presença de um bom número de pessoas num espaço de convivência onde estavamos sujeitos a uma série de intempéries, tornando necessária a colaboração efetiva dos que nele estavam para viabilizar a sua existência. Desde o início uma série de expressões resumiam o que tínhamos em mente para a concepção do que seria o acampamento: auto-gestão, horizontalidade, debates de idéias.

O conceito de auto-gestão foi aplicado no acampamento para garantir o seu funcionamento, no entanto, funcionava como um novo modelo de vida entre pessoas. A capacidade de gerir um espaço de convivência no seu cotidiano foi um desafio a que nos entregamos desde o momento em que percebemos que aquela poderia ser uma experiência longa para nós e que só poderia ser bem sucedida se deixássemos de lado os nossos preconceitos e visões de mundo aprendidas nessa sociedade em que vivemos.

Sem dúvida, o maior desafio para nós era enfrentar toda a criação que tivemos em nossas famílias, quebrar as velhas idéias de divisão social e sexual do trabalho, a nossa incapacidade de gerir nossas vidas com a necessária autonomia, sem depender de um apoio externo. A auto-gestão implicava em definir que todos tinham o mesmo papel no acampamento, que o trabalho manual não estava separado do trabalho intelectual, que as decisões surgiam a partir de discussões honestas entre os acampados. Era a partir daí que entrava a questão da horizontalidade, ninguém poderia assumir o papel de líder do acampamento, dizer o que os outros poderiam fazer, todos tinham a obrigação de tomar iniciativas para o bem-estar geral e o bom funcionamento do espaço.

É claro que atitudes assim não surgem da noite para o dia; algumas pessoas sempre estão mais avançadas do que outras em romper com seus antigos paradigmas. No entanto, isso era algo que sempre teria que ser resolvido a partir do debate de idéias entre os acampados, debates esses que tinham sempre uma grande regularidade. A função desses debates era buscar o avanço de todos no rompimento desses paradigmas, discutir o que foi possível avançar e o que falta ser feito, até onde todos tinham avançado.

O cotidiano do acampamento sempre oferecia novos desafios a todos nós. Entretanto, o compromisso de construir um paradigma de convivência baseado na horizontalidade de decisões, na igualdade de relacionamentos, no respeito mútuo entre os moradores e na quebra de antigos paradigmas de convivência nos ajudou a manter essa luta por quase dois anos. A reflexão que me proponho agora busca entender o que foi aquela experiência e o que pode ser aproveitado dela. A expulsão do acampamento do Gragoatá, agora que estamos no quinto andar do DCE, não significa o fim dessa experiência de vida, muito ao contrário, agora é hora de refletir sobre ela e como continuar a construção desse paradigma em outros espaços de nossa sociedade.

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