terça-feira, 8 de julho de 2008

Artigo da RODA

Aqui na UFF, mais precisamente no meu curso de História, temos uma revista feita pelos próprios estudantes chamada A RODA ( A Revista dOs estuDantes de históriA ). No seu último número eu escrevi um artigo sobre Manoel Bomfim, um historiador de quem falei numa antiga postagem minha. O artigo foi escrito a meses, mas como a revista demorou a sair eu só pude postá-lo no blog agora, pois não seria correto fazer isso antes da revista "ir para a banca". O texto está colocado abaixo.

MANOEL BOMFIM, O PIONEIRO

Num prefácio escrito a 40 anos atrás para uma edição de Raízes do Brasil, o crítico Antonio Candido disse que três livros escritos entre 1933 e 1942 definiram a forma como o Brasil seria lido e estudado daí adiante. Antonio Candido estava falando de Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freire, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nem se pense que estivesse cometendo alguma injustiça ao fazer tal referência. No entanto, a injustiça se fez bem antes dele ao não se dar o devido valor a uma obra escrita bem antes dos referidos livros e que abordava os mesmos temas, contestava os mesmos paradigmas preconceituosos e buscava nos dar uma visão do Brasil até então escondida por trás de ponceitos racistas, baseados em definições científicas que com o tempo se provariam falsas.
O longo esquecimento por que passaria a obra de Manoel Bomfim pode ser explicado pelo seu pioneirismo. Em 1905 ele escreve A América Latina: males de origem, onde produz um panfleto indignado contra muitas das idéias em voga na época para explicar o atraso latino-americano. Bomfim combate ardorosamente a idéia de que esse atraso é fruto da inferioridade racial dos povos locais em comparação com os europeus. Com este livro, o autor, nascido em Sergipe, criava uma tradição histórica que procurava desmontar as velhas teses racistas que justificavam o atraso brasileiro. Devemos a Manoel Bomfim a primeira firme contestação do brasileiro formado pela escória da sociedade portuguesa, os famosos, ou melhor dizendo, os infames degredados. Manoel Bomfim nos mostra como as penas de degredo eram impostas a pessoas por razões que muitas vezes nada tinham específicamente com o caráter dos penalizados, com sua capacidade de trabalho ou seus instintos morais.
Redescoberta nos anos 1990, a obra de Manoel Bomfim passou a ser analisada dentro do contexto de sua época. O seu esquecimento pôde ser explicado a partir do seu teor avançado demais para o período. O Brasil do início do século XX, quando escreveu A América Latina: males de origem e o dos anos 1920, quando escreveu os seus livros da maturidade, O Brasil na América, O Brasil na História e O Brasil-Nação, ainda não estava pronto para digerir muitas das idéias expostas em seus textos. A velha explicação da inferioridade do povo ainda era por demais cômoda para ser deixada de lado por uma elite econômica muito apegada a um passado colonial por demais presente.
Num dos prefácios da obra de Manoel Bomfim fala-se na sua “lusofobia” na hora de analisar o processo de colonização do Brasil. Lendo os seus livros, no entanto, eu me arrisco a dizer que essa é uma conclusão errônea. Várias páginas das diversas obras do autor sergipano são dedicadas a enaltecer o povo português, sua grande coragem em voltar-se para a conquista marítima debaixo das mais precárias condições e desafiando seculares superstições. O autor não deixa de elogiar também a capacidade do português em se misturar com os diferentes povos com os quais entraria em contato e a sua relativa ausência de preconceito de cor, principalmente em comparação com espanhóis e ingleses. Bomfim elogia principalmente a incrível capacidade de um povo que com parcos recursos humanos e materiais foi capaz de construir um vasto império colonial e criar as condições que tornaram possível colonizar a vasta área do território que viria a se tornar o Brasil.
O que a leitura da obra de Manoel Bomfim revela mesmo é uma intensa “bragantinofobia”, ou seja, um profundo desprezo pela dinastia que assumiria o trono português a partir da restauração de 1640. Bomfim não tem dúvida em associar grande parte da decadência de Portugal à dinastia de Bragança. A tese do parasitismo, que o autor sergipano usaria para justificar o esgotamento das forças produtivas de Portugal tem, na dinastia de Bragança, nos seus reis indolentes e esbanjadores, preocupados unicamente em extrair do Brasil o máximo de riqueza para seus fins parasitários, a sua mais plena idealização.
Em O Brasil-Nação ele ainda vai mais longe ao comparar o período imperial brasileiro a uma continuação do “bragantinismo” na vida política do Brasil independente. Essa “bragantinofobia” fica mais evidente com os retratos que Manoel Bomfim faz dos nossos dois únicos imperadores, tanto D. Pedro I quanto seu filho, o primeiro bem mais do que o segundo são retratados de maneira bem desfavorável pelo autor.
O pioneirismo de Manoel Bomfim em escrever sobre o processo de formação da sociedade brasileira não o impediu de cometer os seus erros, bem típícos da época por sinal. A sua própria explicação da decadência portuguesa a partir da teoria do parasitismo estava baseada num modelo cientificista que hoje parece bem superado. O autor sergipano acreditava também no mito da democracia racial brasileira, para ele havia da parte dos senhores de escravos brasileiros uma certa “bondade” no trato com seus escravos que não costumava ser encontrada entre os de outras nacionalidades. A sua visão dos bandeirantes paulistas também tem um quê de idealizada, ao ver nas suas expedições ao sertão uma intenção de nacionalidade que certamente não existia. O mesmo se pode dizer do sentimento de brasilidade que ele julgava existir já no século XVII, e que é descrito por Manoel Bomfim como motor principal de movimentos como o de expulsão dos holandeses nessa mesma época.
No entanto, nenhum desses equívocos desmerece a obra de um autor profundamente preocupado com a realidade brasileira a ponto de se colocar na linha de frente daqueles que não se conformavam com teorias pseudo-científicas para explicar a situação brasileira. Manoel Bomfim viveu seus últimos dias um tempo de transição, ele morreria em 1932. No final dos anos 1920 já haviam no Brasil forças contestadoras da ordem vigente. A semana de arte moderna de 1922 já representava um sopro de renovação em busca de uma identidade brasileira nas artes e na sua própria realidade. O autor sergipano não viveria para ver as obras daqueles que seriam os seus continuadores e que colocariam em discussão os temas que ele já havia abordado sem a mesma repercussão. Como muitos pioneiros, os méritos de Manoel Bomfim demorariam muito para serem devidamente reconhecidos.

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