sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Comentários sobre o texto de Nildo Viana

Depois de muito tempo eu finalmente estou postando as minhas ponderações sobre algumas colocações do professor Nildo Viana sobre a questão das cotas, quem quizer ler o texto dele na integra é só procurar as postagens mais antigas. Eu estou colocando aqui alguns trechos que eu decidi comentar.


É neste contexto que surge a chamada “política de cotas”. Este é um exemplo de política tipicamente paliativa, isto é, neoliberal.

COMENTO: As cotas são realmente uma política paliativa e o maior erro em relação a elas seria mesmo considerá-las como um fim em si mesmo, mas considerá-la como neoliberal me parece uma simplificação em relação às possibilidades existentes de uma mudança efetiva nas condições sociais de largas parcelas da população que de outro modo não teriam chance de acesso a uma universidade. O simples fato de gerar uma discussão sobre as condições sócio-econômicas de uma parcela muito grande da população, relacionando essas condições com a questão étnica, já representa um grande avanço, a possibilidade de relacionar as cotas com a questão classista, não permitindo o discurso da mera reparação histórica pode garantir um grande avanço nas discussões a respeito das origens históricas das desigualdades da população negra no Brasil.

As cotas (raciais, étnicas, sociais) não visam resolver nenhum problema social ou minimizá-lo consideravelmente. O que este tipo de política visa é beneficiar artificialmente uma parcela da população sem aumentar seus gastos e buscando cooptar tais “beneficiados”, legitimando o neoliberalismo.

COMENTO: De fato, as cotas não podem ter mesmo a pretensão de resolver o problema social, trata-se de uma medida emergencial, para um problema que de outro modo só poderia ser resolvido por medidas de longo prazo; essas medidas, aliás, não podem ser deixadas de lado por causa das cotas, mas o fato é que esse é um problema urgente, não dá para esperar por mais 15 ou 20 anos. Quanto aos perigos da cooptação e legitimação do neoliberalismo, eles existem mesmo e só uma discussão séria que ligue a questão das cotas a um discurso de afirmação classista e anti-capitalista vai ser capaz de afastá-lo.


Basta olhar os dados estatísticos sobre a população negra no Brasil, por exemplo, para ver que o sistema de cotas na universidade atinge uma ínfima minoria desta, que é justamente a sua parcela melhor posicionada na sociedade. Se observarmos que a maioria absoluta da população pobre e que não tem a menor possibilidade de acesso ao ensino superior é formada em torno de 70% por negros, então vemos o tanto que tal política beneficia uma pequena minoria, sendo que muitos desses se tornam ardorosos defensores da política de cotas e deixa de lado aqueles que são mais necessitados, e ainda podem posar de militantes em prol do interesse coletivo daqueles que são negros. Esta política de cooptação atinge a parcela da população negra com maior capital cultural e posição social, que, obviamente, possui uma maior penetração nos meios acadêmicos, nos meios de comunicação, nos movimentos sociais, etc.

COMENTO: Esse é um perigo que pode ser evitado se a questão das cotas estivesse atrelado a critérios sócio-econômicos. É evidente que nem todos os negros, ou os que se dizem negros podem ter acesso a essa política, com certeza o netinho do Pelé não deve ter direito a cotas, não importa quão negro ele seja. Cotas tem que ser um recurso para colocar os negros na universidade, mas os negros oriundos da classe proletária. O critério sócio-econômico, em certos casos, deve prevalecer até mesmo sobre o étnico, entre um negro de classe média alta, claramente em condições de ter seus estudos bancados pela família e um branco de origem proletária, é claro que este deve ter prioridade


Esta população negra cooptada também tem novos interesses criados, tal como núcleos de estudos, publicações, pesquisas, etc., ligados ao financiamento realizado por determinadas instituições (inclusive internacionais) e pelo Estado, movimentando grandes somas em dinheiro e criando uma rede de interesses em torno da política de cotas, de temáticas de estudo (“ações afirmativas”, cultura afro-brasileira, etc.) e isto encontra respaldo nas ideologias contemporâneas, especialmente na moda “pós-moderna” (o pós-estruturalismo de Foucault, Guatari, Deleuze, Lyotard, etc.), com seu discurso conveniente contra a totalidade, criando as bases ideológicas e fragmentárias do micro-reformismo. Nada disto é inocente e basta ver a influência das fundações norte-americanas na produção brasileira referente a questão racial para se ver isto (4).

COMENTO: Não há dúvida que essa ideologia pós-moderna tende sempre a deixar as questões totalizantes de lado e fragmentar a luta política em nome de interesses localizados. O movimento negro não pode simplesmente achar que os seus problemas vão ser resolvidos com a simples adoção das cotas. Como eu já disse, essa é uma solução paliativa, emergencial e se não estiver ligada a toda uma discussão de cunho classista, onde as questões que envolvem as razões históricas da situação de opressão social e econômica da maioria da população de origem africana sejam claramente explicitadas, acabará sim, servindo para legitimar a mesma ordem social que criou essa mesma situação de opressão.


O Estado, ao invés de investir na educação, aumentando o número de vagas, apenas realiza um processo de substituição dos ocupantes das vagas, criando cotas que garantem tal troca. Abrir 50% de cotas para alunos oriundos do ensino público, significa que não haverá aumento de vagas, mas tão somente substituição dos ocupantes das vagas. Não ocorre gasto adicional nenhum e ainda há a propaganda que afirma que o Estado realiza políticas em benefício da população (em detrimento de outra parte da população). No caso de cotas para pessoas oriundas do ensino público, vemos apenas algumas pessoas serem beneficiadas em detrimento de outras e sem haver aumento de vagas. Nenhum governo neoliberal aponta para a criação de 50% de novas vagas no ensino superior. Pelo contrário, a política neoliberal sucateia o ensino superior público e incentiva a expansão das instituições privadas de ensino superior.

COMENTO: A solução para esse problema não é combater a política de cotas, mas sim os governos que se recusam a investir seriamente em educação, pois estes não fazem isso por causa das cotas, mas porque não tem interesse em faze-lo. Se não houvesse cotas esses mesmos governos encontrariam meios de continuar não investindo. Dizer que as cotas é a razão dos governos não investirem em educação é meio que livrar a cara desses governos. Nada impede um governo de adotar uma política de cotas, que é uma medida emergencial, e portanto de curto prazo, ao mesmo tempo em que investe em educação, que é uma política de médio e longo prazo. Ambas as medidas não são incompatíveis, ao contrário, são complementares e é nossa obrigação garantir que ambas sejam implementadas. Concordo com a posição do professor Viana quando diz que nenhum governo neoliberal tem real interesse em investir em educação de qualidade para toda a população, por isso mesmo é que é importante não permitir que o debate sobre as cotas não seja descolado da questão classista e da contestação da ordem capitalista vigente.


A política de cotas não apresenta nem a solução do problema que diz vir para resolver e nem possui este nível de articulação com um projeto de transformação social.

COMENTO: Se alguém diz que a política de cotas vai resolver os problemas a qual está relacionada, trata-se de um mentiroso e deve ser denunciado. Quanto a articulá-la com um projeto de transformação social, isso depende muito da disposição dos que almejam essa transformação em utilizar as cotas para esse objetivo

Basta ver o discurso de que é preciso, imediatamente, pagar a “divida histórica” com os negros, para ver que o microreformismo é a sua base. Se existe uma “dívida histórica” com a população negra, esta dívida não é do conjunto da população e sim da classe dominante ? já que foi ela que colonizou, escravizou, explorou, oprimiu ? e não é esta que irá pagar tal dívida, pois os que perderão suas vagas devido ao sistema de cotas são os setores mais pobres da população. Da mesma forma, se existe uma “dívida histórica” com a população negra, também existe a mesma “dívida” com os proletários, lumpemproletários, camponeses, índios, mulheres, jovens, crianças, e diversos outros grupos sociais oprimidos existentes na sociedade moderna.

COMENTO: Eu também não concordo com esse discurso de “dívida histórica”, também acho que deve ser combatido, mas isso pode ser feito sem perder de vista que cotas são um meio tático de aumentar as chances de garantir a populações um acesso ao ensino superior que de outro modo não seria possível.

Assim, se isola a questão negra das demais questões sociais e se cria um paliativo que beneficia apenas os mais bem posicionados desta população e isto permite se pensar que se trata de um projeto compromissado com toda uma população ? a negra, já separada dos demais grupos oprimidos e esta separação entre os oprimidos apenas reflete a estratégia da classe dominante de dividir para dominar mais facilmente ? e na verdade atende interesses de uma minoria no seu interior. Propor aumento das vagas ao invés de cotas, melhoria dos demais níveis de ensino ao invés de privilegiar os privilegiados de um grupo “desprivilegiado” (cuja maioria é desprivilegiada, mas não todos...), entre outras propostas, seria o caminho da articulação entre propostas imediatas e concretas com a formação de uma ação que não é produto de paternalismo estatal que beneficia uma minoria e sim de lutas populares que beneficiam a maioria. Ninguém nunca consegue sua libertação se assumindo como “vítima” e pedindo aos seus algozes a sua libertação, quando isto ocorre com alguns indivíduos, o que se faz é transformar a “vítima” num novo algoz.

COMENTO: O isolamento da questão só vai se dar se a política de cotas for tratada como um fim em si mesma e não como parte de uma discussão sobre o tipo de sociedade que obrigou à sua criação e que sociedade queremos daqui para frente. Quanto a questão do aumento de vagas em vez de cotas, eu creio ser esse um falso dilema, uma coisa não exclui a outra. Existe sim a possibilidade das cotas ajudarem a criar um elite de negros para se juntar à elite branca já existente e garantir a manutenção da sociedade exatamente do jeito que está, esse perigo está colocado sim e só o evitaremos se não fugirmos do debate sobre que tipo de sociedade nós queremos e como podemos instrumentalizar a política de cotas para atingir esse objetivo.

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