segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Autor interessante

Em nossas discussões teóricas no acampamento tive a oportunidade de conhecer um autor que é professor da Universidade Estadual de Goiás chamado Nildo Viana. Meu primeiro contato foi com o texto de um livro dele sobre partidos políticos que foi trazido por um dos militantes do movimento. Trata-se um autor que busca construir uma reflexão teórica capaz de oferecer novos paradigmas que nos possibilitaria romper o atual impasse em que os movimentos políticos e sociais se encontram. Não é com tudo que ele escreve que eu concordo, por exemplo, esse texto abaixo ele faz uma reflexão bem negativa a respeito da política de cotas da qual eu discordo dele em vários pontos. Eu pretendo ler o texto mais aprofundadamente para apresentar essas discordâncias numa outra postagem, por isso mesmo eu o estou postando inteiro nessa postagem, no final do texto tem a referência sobre onde se pode ler outros textos dele.



REVISTA ESPAÇO LIVRE
Vol. 01, Num. 02, Julho-Agosto de 2005
Espaço Livre - 01


Política de Cotas, Política Neoliberal
Nildo Viana

A gênese da política de cotas tem raízes históricas e sociais. As políticas estatais (chamadas ?públicas?) nunca nascem devido a genialidade dos governantes ou ao acaso. Elas são um fenômeno concreto e por isso possuem determinações que explicam sua gênese. O Estado, o aparelho produtor e realizador das políticas estatais, sofre mutações com o desenvolvimento histórico. As mudanças estatais explicam as alterações na constituição, alteração, conteúdo e forma das políticas denominadas ?públicas?.

As políticas estatais mudam com as mudanças na forma do Estado capitalista. Basta ver o exemplo da mais recente mutação estatal, a passagem do Estado integracionista (dito do ?bem estar social?, ou keynesiano) para o Estado neoliberal para observarmos isto (1). O Estado integracionista utiliza uma ampla gama de políticas estatais visando integrar o conjunto da população na sociedade capitalista, sendo resultado de um processo de luta de classes que coloca o Estado enquanto instituição que salvaguardar o capitalismo através de alguns benefícios e da cooptação, após as tentativas de revoluções proletárias que sacudiram o mundo na primeira metade do século 20 e das duas guerras mundiais. Obviamente que é necessário compreender que esta formação estatal só existiu plenamente nos países de capitalismo superdesenvolvido, no qual o processo de transferência de mais-valor dos países ?pobres? para os países ?ricos? permitia este dispêndio estatal e a implantação da chamada ?sociedade de consumo?.

A transição para o neoliberalismo ocorre com a crescente dificuldade da acumulação capitalista. A queda da taxa de lucro, já teorizada por Marx (2), muda a lógica de reprodução do capitalismo, que busca tanto aumentar o processo de exploração nacional (a dita ?reestruturação produtiva?) quanto internacional (neoimperialismo), e ao mesmo tempo erige uma nova formação estatal, o neoliberalismo. O neoliberalismo complementa a reestruturação produtiva ? corroendo os direitos trabalhistas e ?flexibilizando? as relações de trabalho no sentido de permitir, legalmente, uma maior exploração da força de trabalho ? e o neoimperialismo, assumindo o papel protecionista nos países imperialistas e defendendo o livre comércio nos países de capitalismo subordinado. O Estado neoliberal, mínimo e forte, segundo seus ideólogos, é aquele que busca conter seus gastos sociais, reduzindo ao mínimo as políticas estatais para a população e adquirir uma papel repressivo cada vez mais intensivo, devido ao acirramento dos conflitos sociais, aumento da miséria, criminalidade e violência. Ele se torna um ?Estado Penal? (3).

O Estado neoliberal, ao contrário do seu antecessor, não possui um conjunto de políticas estatais voltadas para o chamado ?bem estar social? e sim uma forte política repressiva e um conjunto de paliativos que buscam amenizar as contradições sociais através da cooptação e responsabilização da sociedade civil. É neste contexto que há a expansão do chamado ?terceiro setor?, das ONGs, etc., bem como novas ideologias e ações que jogam para a sociedade civil as antigas responsabilidades estatais (voluntariado, ?amigos da escola?, etc.). Assim, as políticas estatais neoliberais são políticas paliativas, isto é, não visam a resolução de problemas sociais e sim sua amenização, não estruturam um conjunto de políticas estatais voltadas para áreas chaves, mas sim para legitimar e desmobilizar reivindicações sociais mais intensivas e resolutivas. Isto está de acordo com o princípio neoliberal de diminuir os gastos sociais, já que tais políticas possuem custos muito mais baixos. A privatização é o complemento de todo este processo, pois ela joga para instituições que visam lucro diversos serviços sociais (educação, saúde, etc.) que antes eram responsabilidade do Estado.

É neste contexto que surge a chamada ?política de cotas?. Este é um exemplo de política tipicamente paliativa, isto é, neoliberal. As cotas (raciais, étnicas, sociais) não visam resolver nenhum problema social ou minimizá-lo consideravelmente. O que este tipo de política visa é beneficiar artificialmente uma parcela da população sem aumentar seus gastos e buscando cooptar tais ?beneficiados?, legitimando o neoliberalismo. Basta olhar os dados estatísticos sobre a população negra no Brasil, por exemplo, para ver que o sistema de cotas na universidade atinge uma ínfima minoria desta, que é justamente a sua parcela melhor posicionada na sociedade. Se observarmos que a maioria absoluta da população pobre e que não tem a menor possibilidade de acesso ao ensino superior é formada em torno de 70% por negros, então vemos o tanto que tal política beneficia uma pequena minoria, sendo que muitos desses se tornam ardorosos defensores da política de cotas e deixa de lado aqueles que são mais necessitados, e ainda podem posar de militantes em prol do interesse coletivo daqueles que são negros. Esta política de cooptação atinge a parcela da população negra com maior capital cultural e posição social, que, obviamente, possui uma maior penetração nos meios acadêmicos, nos meios de comunicação, nos movimentos sociais, etc.

Esta população negra cooptada também tem novos interesses criados, tal como núcleos de estudos, publicações, pesquisas, etc., ligados ao financiamento realizado por determinadas instituições (inclusive internacionais) e pelo Estado, movimentando grandes somas em dinheiro e criando uma rede de interesses em torno da política de cotas, de temáticas de estudo (?ações afirmativas?, cultura afro-brasileira, etc.) e isto encontra respaldo nas ideologias contemporâneas, especialmente na moda ?pós-moderna? (o pós-estruturalismo de Foucault, Guatari, Deleuze, Lyotard, etc.), com seu discurso conveniente contra a totalidade, criando as bases ideológicas e fragmentárias do micro-reformismo. Nada disto é inocente e basta ver a influência das fundações norte-americanas na produção brasileira referente a questão racial para se ver isto (4).

O Estado, ao invés de investir na educação, aumentando o número de vagas, apenas realiza um processo de substituição dos ocupantes das vagas, criando cotas que garantem tal troca. Abrir 50% de cotas para alunos oriundos do ensino público, significa que não haverá aumento de vagas, mas tão somente substituição dos ocupantes das vagas. Não ocorre gasto adicional nenhum e ainda há a propaganda que afirma que o Estado realiza políticas em benefício da população (em detrimento de outra parte da população). No caso de cotas para pessoas oriundas do ensino público, vemos apenas algumas pessoas serem beneficiadas em detrimento de outras e sem haver aumento de vagas. Nenhum governo neoliberal aponta para a criação de 50% de novas vagas no ensino superior. Pelo contrário, a política neoliberal sucateia o ensino superior público e incentiva a expansão das instituições privadas de ensino superior.

O sistema de cotas não resolve nenhuma questão mas possui muitos defensores. A dissolução do Estado integracionista pulverizou as esquerdas institucionais. A social-democracia se tornou um ?neoliberalismo de esquerda?, que apenas busca unir um microreformismo ao sabor ?pós-moderno? com o pragmatismo conservador e, portanto, submetido a pauta neoliberal. As grandes reformas sociais nem sequer são mais citadas e a idéia transformação social já havia sido abandonada pela social-democracia após a Segunda Guerra Mundial. Os novos governos social-democratas reproduzem a lógica neoliberal e se diferenciam apenas por apresentar projetos que não saem do papel juntamente com um aprofundamento de paliativos e responsabilização da sociedade civil. A sua ala mais à esquerda apresenta projetos de ?economia popular?, ?economia solidária?, ?desenvolvimento sustentável? e coisas do gênero, às vezes utilizando linguagem mais radical e ainda falando de socialismo, mas sem rupturas e através de uma idéia de desenvolvimento linear de cooperativas e iniciativas da sociedade civil até o socialismo, lembrando o reformismo do início do século 20.

Assim, a transformação social sai do horizonte das esquerdas institucionais e o microreformismo, um reformismo em migalhas, assume seu lugar. Obviamente que muitos argumentam que não se pode esperar a realização da utopia para depois se fazer alguma coisa. Tal colocação já revela um posicionamento ao colocar que a transformação social é uma ?utopia?, mas aponta para a necessidade de ações imediatas e pragmáticas. Sem dúvida, são necessárias ações imediatas, mas elas só possuem algum valor real se são realizadas a partir de uma articulação com o projeto de transformação social e que apresentem a proposta de reformas que servem para a acumulação de forças do campo revolucionário e outras que colocam em xeque a própria sociedade existente, o que André Gorz denominou ?reformas não-reformistas? (5).

A política de cotas não apresenta nem a solução do problema que diz vir para resolver e nem possui este nível de articulação com um projeto de transformação social. Basta ver o discurso de que é preciso, imediatamente, pagar a ?divida histórica? com os negros, para ver que o microreformismo é a sua base. Se existe uma ?dívida histórica? com a população negra, esta dívida não é do conjunto da população e sim da classe dominante ? já que foi ela que colonizou, escravizou, explorou, oprimiu ? e não é esta que irá pagar tal dívida, pois os que perderão suas vagas devido ao sistema de cotas são os setores mais pobres da população. Da mesma forma, se existe uma ?dívida histórica? com a população negra, também existe a mesma ?dívida? com os proletários, lumpemproletários, camponeses, índios, mulheres, jovens, crianças, e diversos outros grupos sociais oprimidos existentes na sociedade moderna. Assim, se isola a questão negra das demais questões sociais e se cria um paliativo que beneficia apenas os mais bem posicionados desta população e isto permite se pensar que se trata de um projeto compromissado com toda uma população ? a negra, já separada dos demais grupos oprimidos e esta separação entre os oprimidos apenas reflete a estratégia da classe dominante de dividir para dominar mais facilmente ? e na verdade atende interesses de uma minoria no seu interior. Propor aumento das vagas ao invés de cotas, melhoria dos demais níveis de ensino ao invés de privilegiar os privilegiados de um grupo ?desprivilegiado? (cuja maioria é desprivilegiada, mas não todos...), entre outras propostas, seria o caminho da articulação entre propostas imediatas e concretas com a formação de uma ação que não é produto de paternalismo estatal que beneficia uma minoria e sim de lutas populares que beneficiam a maioria. Ninguém nunca consegue sua libertação se assumindo como ?vítima? e pedindo aos seus algozes a sua libertação, quando isto ocorre com alguns indivíduos, o que se faz é transformar a ?vítima? num novo algoz.

É preciso ultrapassar o pensamento único, o neoliberalismo. Isto é possível superando os marcos do seu pensamento, tanto do neoliberalismo de direita quanto do de esquerda, pois ambos são neoliberais. A renda nacional cada vez mais se concentra em poucas mãos e o Estado neoliberal cumpre o papel de evitar gastos e criar paliativos para substituir as políticas estatais de atendimento à população e através de responsabilização da sociedade civil pelo que antes era um atributo seu. O Estado sempre teve o papel chave de no processo de repartição do mais-valor na sociedade e sempre fez isto de acordo com os interesses dominantes. As dificuldades encontradas no processo de acumulação capitalista fazem com que haja a intensificação da ação estatal no sentido de garantir uma maior parte da renda nacional para o capital e a luta hoje deve ser contra isto e a favor da criação de condições favoráveis para a transformação social.
Nota:
1 ? VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
2 ? MARX, Karl. O Capital. 5 vols. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
3 ? WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
4 ? ?Poder-se-ia invocar, evidentemente, o papel motor que desempenharam as grandes fundações americanas de filantropia e pesquisa na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro, tanto no plano das representações, quanto das práticas. Assim, a Fundação Rockfeller financia um programa sobre ?Raça e etnicidade? na Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade Cândido Mendes, de maneira a manter intercâmbio de pesquisadores e estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana (...)? (BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Löic. Prefácio: Sobre as Armadilhas da Razão Imperialista. In: BOURDIEU, P. Escritos de Educação. 3ª edição, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 25).
4 ? GORZ, A. Estratégia Operária e Neocapitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
Nildo Viana
Prof. da UEG - Universidade Estadual de Goiás
Doutor em Sociologia/UnB

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